quarta-feira, 30 de julho de 2014

A arte e o lugar de ocupar a cidade - por Tatit Brandão


Conhecemos a Tatit Brandão no primeiro dia da Oficina de Teatro do Oprimido que o Coletivo Território B realizou com o Armindo Pinto na Ocupação São João, com o apoio do Centro Cultural Ocupação São João. Ao final da nosso segundo encontro, avisamos a todos que apresentaríamos nossa peça, Banalidade, como parte das atividades do projeto Não Consta no Mapa, na Ocupação Nova Palestina, que fica no M’Boi Mirim. Foi um enorme prazer vê-la chegar por lá, no domingo. E foi maravilhoso descobrir as afinidades de nossos trabalhos, afinidades que podemos testemunhar lendo o texto que ela publicou poucos dias depois, no blog Periferia Invisível. Decidimos colocar o texto na íntegra. As fotos também foram tiradas por Tatit Brandão.

    A arte e o lugar de ocupar a cidade

Primeiro domingo de junho, mês da Copa do Mundo no Brasil. Sol, calor, São Paulo sem metrô. No extremo sul da cidade, no bairro do Jardim Ângela, estava marcada uma apresentação de teatro de um grupo formado por atores e músicos vindos do centro da cidade.

O endereço onde estava prevista a apresentação, não constava no mapa. Não havia rua, nem número, nem teatro com palco italiano ou cadeiras confortáveis para o público. Era um terreno ocupado por moradores da região que são, em sua grande maioria, trabalhadores vitimizados pelos valores altos de aluguel, habitantes de localidades de risco, massacrados pelo sistema opressor e excludente na qual a engrenagem da metrópole gira.

O lugar sem endereço é um terreno de 500 mil metros quadrados e o valor da entrada da peça era a curiosidade e o interesse de qualquer uma das 6 mil pessoas que acampam numa das maiores ocupações de luta por habitação do país. Organizada pelo Movimento de Trabalhadores Sem Teto, cerca de duas mil famílias ocuparam, no dia 29 de novembro de 2013, o matagal enorme e abandonado que servia como depósito de lixo, carcaça de carros, entre outros. Desde então, a Ocupação Vila Nova Palestina, nome que foi dado pelos próprios moradores, tem recebido cada vez mais trabalhadores dispostos a arregaçar as mangas e entrar nessa batalha.
menor_tatitbrandao_banalidade_palestina-3
Depois de uma viagem de quase 2 horas, mesmo eu tendo saído já da zona sul, dos arredores de Santo Amaro, desci do ônibus no ponto certo, graças a indicação de um passageiro. Havia pedido a informação ao motorista e ao cobrador, que não sabiam de nenhuma ocupação, “barraco tem aos montes e em todo lugar aqui nesses bairros de fim de mundo, minha filha”, disse em tom cansado o cobrador. O mesmo que disse, saindo do Terminal Capelinha, que de domingo é bom, que não tem trânsito, e que a gente ia chegar rapidinho, em torno de 1h20. Me senti num ônibus de viagem, indo para outra cidade de verdade, só que sem qualquer conforto. Assim que cheguei na Estrada do M’Boi Mirim, atravessei para o lado oposto, para ter melhor perspectiva. Era uma infinidade de barracos e entre uns aglomerados deles, uns caminhos estreitos no chão de terra, definindo as vielas. Escolhi uma dessas ruas e subi com calma. Queria ter mais olhos, atrás e nas laterais da minha cabeça. Estava ali para ver uma peça de teatro e já nesse primeiro trecho de subida, para tudo que é fresta e direção que eu olhava, havia cena.

No meio da caminhada, percebi que o relógio já marcava 14h, justamente o horário que estava prevista a apresentação. Encontrei alguns moradores pelo caminho e aproveitei a companhia, os segui, estavam indo ou voltando do almoço. A cozinha e o banheiro são coletivos e cada grupo de barracos tem os seus próprios. Cada espaço com uma quantidade de barracos próximos (o que seria quase uma reprodução de um quarteirão no asfalto) tem uma estrutura melhor e maior para garantir a manutenção de equipamentos, como geladeira, fogão, alguma estrutura de pia, alguma estrutura de armários para guardar utensílios e mantimentos, e próximo dali o banheiro. Tudo funciona.

Perguntei sobre onde seria o teatro para o primeiro casal que encontrei. O homem disse que era próximo da sede, lá em cima, que era para eu subir até o fim. Perguntei para mais uma família, esta fazia a manutenção de sua casa – duas crianças esticavam plásticos pretos parecidos com o material de sacos de lixo, um homem pregava madeiras e a mulher varria o pequeno capacho na frente da porta, completamente solta, encostada na frente do barraco. A mulher me informou, aproveitou e  explicou que todos haviam sido avisados desse evento nas assembleias que aconteceram durante a semana, além dos informes diários. Fiquei admirada e com vontade de ter aula de comunicação com os moradores que cuidam da área. De novo a sensação de que tudo funciona.

Lá no topo, o sol a pino. Quase três da tarde. Cachorro, criança, bêbado, bebê no carrinho. Todos espremidos num pedaço de sombra perto de uma das construções. Os atores aquecendo lá no centro e esperando o povo voltar do almoço enquanto o vento levantava bastante poeira.

Aproveitei para dar uma volta com a câmera fotográfica na mão. Vi homens e mulheres construindo, pregando, esticando lona, levando e trazendo ferramentas, crianças com enxada na mão. Num dos barracos parei. Era uma senhora sentada do lado de fora que quando me viu sorriu bem aberto e um senhor sem camisa, de bermuda e com um boné velho trabalhando duro. Perguntei se fazia tempo que eles estavam ali. Ela se levantou e disse que ia adorar bater um papo comigo, mas que eu não tirasse foto dela, porque não tinha se arrumado nem passado batom. Até guardei a câmera na bolsa, ali não me interessava mais nada além da fala clara e os olhos vivos daquela senhora magrinha de cabelinho tão branco. Na minha frente, estava Dona Maria do Carmo, 61 anos, mãe de filho morto, avó, guerreira e vaidosa. Contou que entrou tarde na luta, que primeiro achava que pobre nascia pobre e morria pobre. E quando era mais nova até passou um tempo acreditando que a “melhoria de vida” podia acontecer se ela trabalhasse muito, dia e noite, mas que o tempo foi passando, ela foi envelhecendo trabalhando dia e noite e a melhoria nunca que vinha. Até que perdeu o filho, 13 anos atrás, “perdi assim, morto de bala. Mataram por droga. Nunca soube direito, os vizinhos na época disseram que foi polícia, nem quis saber.” Depois disso decidiu que ia morrer pobre mesmo, porque não ia ter jeito, que não era uma questão de escolha, mas que ia deixar de herança o sonho de uma vida mais humana e justa para o neto que hoje tem 16 anos e os filhos que o neto ainda vai ter. Me contou orgulhosa que o neto trabalha numa rede de supermercado lá na cidade. “Lá na cidade”, fiquei pensando. De qual cidade ela se referia? São Paulo para ela talvez fosse longe daquela rua de terra e da casa feita de lona azul, com o piso forrado de papelão onde havia um colchão de casal. Ao mesmo tempo questionei sobre a minha própria visão dessa cidade que ela falava e eu entendia. Enquanto me perdia nos pensamentos de boca fechada, ela entrou dizendo “deixa te mostrar o meu menino, ele é a cara todinha do pai” e voltou com uma bolsa, de onde saiu uma foto 3×4. “O menino é lindo!”, eu disse emocionada antes de dar um beijo e agradecer a conversa.
menor_tatitbrandao_banalidade_palestina-21 (1)
Voltei para o descampado lá em cima. Ali, as pessoas veriam um espelho de forma extraordinária, trazidos por quatro atores. Um espelho com instrumento musical, com voz afinada, com emoção, com exagero, com palavras e sequência de cenas organizadas para tudo fazer sentido, para que a mensagem pudesse ser decodificada por qualquer um, incluindo e principalmente os protagonistas reais da história: aquele público. Tudo isso porque “Banalidade”, o primeiro e até então único espetáculo do Coletivo Território B, conta a história da Ocupação Pinheirinho, organizada também pelo MTST numa cidade do interior paulista não tão longe, São José dos Campos. Nem tão longe de distância, muito menos daquela realidade.

A montagem deste espetáculo surgiu de uma pesquisa e construção de cenas que o grupo fazia em praças e espaços públicos. O espetáculo foi feito na rua e não para a rua. Inicialmente foi montada sem diretor, depois ganhou a colaboração do olhar de dois artistas da Brava Cia, que somaram na amarração de um ponto de vista de direção. Nesse processo, o tema da peça acabou incluindo a questão da moradia e assim a história do Pinheirinho é contada com o contraponto da alegoria da Mamãe Grande, personagem de um conto do Gabriel Garcia Marquez. Com isso, o grupo formatou um projeto nomeado “Não Consta no Mapa”, com o qual foi contemplado este ano pela Lei de Fomento ao Teatro da cidade de São Paulo. O projeto inteiro é voltado para a identidade cultural produzida dentro de ocupações de luta por moradia. O grupo já havia passado por outras ocupações, como no bairro do Grajaú, num prédio que está sendo construído no litoral organizado pela Associação de Cortiços do Centro da cidade de Santos e num acampamento de frente para a Secretaria da Habitação, de pessoas que haviam sido despejadas de uma ocupação na Av. Ipiranga por reintegração de posse.

Segundo Luciano Carvalho, ator e músico da peça, em todas essas experiências o que se observa é que vem se falando cada vez mais da necessidade de atividades culturais dentro de ocupações, por diversos motivos, “tem o pensamento de que cultura não vem de fora, cultura você mesmo produz, sendo assim, essa luta por moradia já tem uma cultura própria e a nossa função como artista é percebê-la e transformá-la numa identidade consciente”. E completa dizendo que a maior motivação do grupo com o espetáculo é tornar visível essas pessoas que a mídia trata como invisíveis e fazer a população olhar para isso, independente se são a favor ou contra, mas  perceberem que ali tem vida. Além das apresentações, o Território B está também preenchendo as noites de segundas-feiras na Ocupação São João, onde acontece desde maio uma oficina de Teatro do Oprimido, com o facilitador Armindo Pinto.

Durante a apresentação da peça mantive meus ouvidos bem abertos e acredito que tenha assistido mais ao público do que à peça em si. Numa cena em que o sistema capitalista é representado por uma grande boca aberta que pede insaciavelmente por sonhos alheios (simbolizados em cena por bexigas de ar distribuídos para o público), uma mulher atrás de mim, segurando o balão disse: “Eu hein que vou dar assim pra qualquer um meu sonho”, um moço provocou: “E você nunca vai dar seu sonho pra ninguém?”, e ela arrematou: “Primeiro eu preciso saber quem é e o que querem fazer dele. Meu sonho é o que eu tenho de mais valioso na vida!”. Ali, pra mim, eu já podia ir embora.
menor_tatitbrandao_banalidade_palestina-70
Quando a peça acabou, a cozinha serviu gratuitamente para as crianças pipoca e refrigerante, que vieram de doação dos acampados. Havia cerveja sendo vendida, como forma de arrecadar verba. “O povo é cheio de preconceito, fica por aí falando besteira, que a gente não trabalha, que a gente não consegue nada, que não sabe de onde vem o dinheiro pra comprar as coisas. Por que não sobe o morro e vem perguntar aqui pra gente, ver as prestações de contas, as anotações? Por que não vem ver com os próprios olhos? Porque não é todo mundo que tem vontade de sujar o pé na lama, né?”, tive que concordar com a verdade mais que verdadeira da Miriam, que falava comigo e servia a criançada que não parava de pedir refrigerante de laranja ou de guaraná.

O sol caía no horizonte bonito quando fui conversar com a Jussara Basso, uma das coordenadoras estaduais do MTST, quem recebeu e agendou o grupo. Não podia falar muito porque dentro de pouco tempo aconteceria ali, no mesmo local, uma assembleia. Aproveitando a deixa, me contou que a pauta principal daquela noite era a organização do dia seguinte no apoio aos metroviários, que estavam indo para o quinto dia de greve na luta por melhores condições de trabalho. Assembleias acontecem ali pelo menos três vezes na semana e nelas surgem as mais variadas pautas, desde consciência ambiental, convívio social, necessidades estruturais, até a agenda da semana. Segundo Jussara, a arte tem lugar certo dentro da ocupação. Todo fim de semana acontecem projeções de filmes, espetáculos de dança, teatro, circo. E isso foi votado em assembleia e em torno de 3 mil moradores votaram que sim, que queriam eventos culturais aos finais de semana. Na própria comunidade já se formou um grupo de teatro feito por 13 acampados. O que me leva a refletir que este ambiente de comunidade, de preocupação e cuidado coletivos, impulsiona e fomenta a vontade e a disponibilidade de corpo para a expressão artística. Seja ela qual for.

Saí de lá e trouxe comigo a certeza de que a periferia é invisível só para quem não quer enxergá-la. Só para os preguiçosos no olhar, para os limitados que se cercam em seus próprios umbigos.

Naquele quase fim de zona sul, num bairro que é contemplado pela margem nada bonita ou limpa da represa Guarapiranga, é bem clara a imagem viva da construção com fé e com muito suor de uma sociedade colaborativa tão sonhada por tantos. É de um dos parceiros do Raul Seixas uma frase que é das minhas preferidas da vida: o homem só precisa de duas coisas para viver: comida e sonho. Para os artistas, para os oprimidos e para todos os trabalhadores que estão na luta em busca de uma vida com menos desigualdade, sonhar não é opção, é responsabilidade social.

http://www.periferiainvisivel.com.br/a-arte-e-o-lugar-de-ocupar-a-cidade/

Tatit Brandão é fotógrafa, jornalista e atriz pesquisadora de pedagogia do teatro na Escola Livre de Teatro de Santo André. Trabalha como assessora de imprensa freelancer, dá aula de fotografia e comunicação comunitária em comunidades e colabora escrevendo e fotografando para sites de arte e cultura. Tatit é marxista. Filha de Iansã. E mãe da Nara.


Periferia Invisível é um portal de uma Associação de Arte e Cultura (de mesmo nome) que fica na Zona Leste, no qual Tatit colabora como colunista - ou midialivrista, como ela prefere dizer. O Periferia Invisível já existe desde 2009 e desde então se presta à função de registrar o que está acontecendo de cultura nas diversas periferias da cidade. Esse ano a associação teve a conquista de ser contemplada pelo edital de Ponto de Cultura.