terça-feira, 21 de outubro de 2014

O•CU•PAR


o·cu·par
(latim occupo, -are)
verbo transitivo
1. Tomar ou estar na posse de. 2. Exercer o controlo sobre determinado espaço. 3. Não deixar que outrem utilize algo; tomar para si sem partilhar (ex.: ocupar a casa de banho; não quero ocupar o seu tempo). ≠ DESOCUPAR, LIBERTAR 4. Preencher um espaço ou um território. = ENCHER 5. Estar instalado em determinado lugar. = HABITAR, INSTALAR-SE, MORARDESOCUPAR 6. Instalar-se em casa ou terreno sem autorização do proprietário. ≠ DESOCUPAR 7. Exercer, desempenhar. 8. Atribuir tarefas ou dar ocupação a. 9. Embaraçar, estorvar. 10. Ser objecto de. 11. Pejar. 12. Tornar-se grávida. 13. Ter como assunto. = DEDICAR-SE, TRATAR 14. Tomar a seu cargo. = CUIDAR, TRATAR, VELAR, ZELAR 15. Entreter-se. 16. Empregar-se.



É de extrema importância que o meio seja em algum aspecto, se não em quantos puder, resultante da ação direta de quem ocupa. O espaço da lugar ao assim dito “lugar” pela ação que pode ser estética, construção com narrativas, imaginários, histórias, transformações, reformas, concertos, adequações, afetos, etc. Ele significa a própria atividade exercida nele e isso o sustenta enquanto objeto transformado e de transformação diante do sujeito passivo e ativo (7. Exercer, desempenhar. 14. Tomar a seu cargo. = CUIDAR, TRATAR, VELAR, ZELAR ). Os corpos que ocupam, nesse caso, o fazem com a propriedade de seu próprio trabalho, ou seja, com suas ferramentas, mãos, e estão sujeitos a resistência que o espaço tem para ser transformado, as limitações materiais, improvisos, soluções imediatas. O autor é o fazedor, que pode ser traduzido: poeta – 15. Entreter-se.

É claro, também há a ação indireta de ocupar e talvez ocupar nesse caso já seja por outro viés da definição. Ocupar de maneira acéptica, quando outros corpos são instrumentos de organização do espaço, onde a regra está dada, já que a estrutura de pensar o e agir no espaço é verticalizada. Se existe um projeto anterior, que pode ou não ser traçado por uma experiência com o espaço, se o sujeito da ação sobre o espaço tem uma demanda ou objetivo anterior ele, a relação orgânica com o espaço deixa de acontecer em confluência com o sujeito que a propõem (2. Exercer o controle sobre determinado espaço / 8. Atribuir tarefas ou dar ocupação ª). Esse espaço significa apenas uma grande extensão de anseios anteriores, exemplo: uma “moradia popular”, o anseio do arquiteto enquanto concepção; da empreiteira enquanto viabilidade/lucro; do mercado, enquanto produto que atende uma demanda; da política pública, enquanto demanda social e demanda imobiliária. Ou talvez, uma instalação artística, projetada por um sujeito, executada por outros, com resultado a ser friamente experienciado pelo público (3. Não deixar que outrem utilize algo;)

Não deixar que outrem utilize algo. Eis a função dos proprietários, exercida de diversas maneiras, na medida em que controlam a produção do espaço que pode ser física, simbólica, ambas ou nenhuma das duas. Seguranças, polícia, manutenção, muros, ultilização comercial e papéis são ferramentas de manter “ocupado” no sentido de não deixar que outro de fato ocupe.

O abandono do lugar o leva de novo à condição de espaço, como se chamasse à intervenção. Nessa equação o tempo de desuso empodera-o de autonomia como objeto significante em relação ao ocupante ou sujeito significador, passivo ante ruínas ou verificáveis períodos de tempo gravitando. 

6. Instalar-se em casa ou terreno sem autorização do proprietário. ≠ DESOCUPAR



(Gabriel Marcondes, Artista plástico e integrante do Coletivo Território B.) 

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Encontro com a Trupe Lona Preta.


Na segunda-feira 13, de outubro, o pessoal do Não Consta no Mapa e mais alguns parceiros convidados foram até o Jardim Guaraú, para encontrar-se com a Trupe Lona Preta.
Foi uma oportunidade para a troca de experiências, e para o aprofundamento de ideias sobre nossos trabalhos. O Lona Preta vem realizando pesquisas e montando peças teatrais para serem apresentadas, principalmente, para o público das ocupações por moradia.
Foram relatados causos e colocadas opiniões diversas. Tratamos desde questões relacionadas à poética, técnicas cênicas e dramatúrgicas, até análises sobre as atuações dos movimentos e as vidas das pessoas necessitadas de moradia.
Com esse encontro, pudemos dar continuidade às atividades de trocas com coletivos, o que é uma das intenções do Coletivo Território B desde o início do projeto.


segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Mar à vista

Mar à vista.

O projeto “Não Consta no Mapa” começou, oficialmente, num memorável encontro, a Oficina de Teatro do Oprimido que aconteceu no Centro Cultural Ocupação São João, que fica dentro dessa ocupação. Tínhamos um cronograma e ficamos empolgados com as participações que estavam ocorrendo. Sabíamos que, devido ao caráter aberto do projeto, que combina criação coletiva, intervenção, processos abertos a outros coletivos etc., tudo deveria ser constantemente revisto. Um dos fatores que também pesava muito para essa necessidade de revisão constante era o fato de estarmos trabalhando com pessoas e em locais em uma situação de insegurança, pois a reintegração de posse é uma assombração constante junto a uns e outras. De fato, na prática, tivemos que lidar mais de uma vez com isso, quando alguns de nossos planos ou ações foram impedidos ou transformados por força de acontecimentos dessa natureza… e de outras naturezas que não esperávamos!

O que ocorreu comigo, desde o começo do projeto até agora, e que durante os dois primeiros meses me colocou num estado de atordoamento (permanecer dois meses atordoado foi uma experiência exaustiva) foi que a cada semana, toda a minha percepção da problemática da luta por moradia e a minha visão da cidade de São Paulo mudavam muito. Camadas diferentes se revelavam, outras lógicas, outros modos de interpretrar, e até mesmo a capacidade de enxergar coisas até então invisíveis para mim.

Um dos pontos mais importantes nesse processo é o que se refere aos movimentos por moradia. O que são esses movimentos? Como eles acontecem? Ao penetrar no assunto, descobríamos que, além das visões diferentes e divergentes que as pessoas em torno das ocupações possuem, dentro dos movimentos existe um universo complexo e surpreendente. São muitos movimentos diferentes, alguns saídos de outros, alguns juntados com outros, com estratégias diferentes para conquistar realizações de tipos diferentes também. Estão todos lutando por moradia, mas, por exemplo, se se trata de periferia, é muito diferente de quem pleiteia um edifício já existente no centro. E o prédio no centro, no mais das vezes, não é o objetivo final, mas uma fase da luta, quando o movimento usa a ocupação de um prédio abandonado no centro para pressionar o governo a construir moradia popular na periferia.

Identificamos métodos diferentes de luta, e maneiras diferentes de se engajar, por parte dos militantes e ocupantes. Conversando, ouvimos histórias. Essas conversas, geralmente em visitas a ocupações, somaram-se a experiências nossas na Ocupação São João (intervenções, a continuidade das oficinas de Teatro do Oprimido e a mera presença constante na ocupação), e essa soma paulatinamente acrescentou perspectivas, que vinham do dia a dia e dos sentimentos de indivíduos, por sua vez muito diferentes do que podíamos ver, quando pensávamos sobre os movimentos e suas entranhas políticas. Nessas histórias e experiências surgiram as pessoas, com muitas particularidades. Elas nos trouxeram críticas e elogios aos movimentos que eram para nós verdadeiras novas informações. Havia desde a pessoa que suportava o movimento, porque não conseguia pensar em outra maneira de finalmente conseguir sua casa, até a pessoa que decididamente abraçava o “método” da ocupação como uma causa social, uma forma de vida, e que com muito orgulho tinha aprendido isso dos pais e já o ensinava aos filhos (e isso independentemente de estar militando ou não num movimento específico, ou de já ter conquistado a sua própria casa, indo viver na ocupação para ajudar na luta coletiva).

Chegamos aos poucos no ponto de olhar para essa miríade de realidades e verificar que o que antes era um espaço escondido e apenas entrevisto, era um mar. No interior das ocupações acontecem histórias que carregam um colorido próprio desta situação. Tudo o que existe “fora”, como violências domésticas, machismo, homofobia; divergências políticas; romances, amizades; etc.; também existe “dentro” das ocupações, mas elas acabam revelando uma construção cultural própria do ambiente em que ocorrem, misturando-se a outras problemáticas e experiências, como as diferenças de participação (aquele que luta e aquele que aproveita a luta do outro, por necessidade, ou por malandragem), os exercícios democráticos ou de criação coletiva (assembléias, festas, mutirões etc.) e a ameaça constante de reintegração de posse. Essa coloração própria é uma cultura, uma invenção local mediante uma realidade local.

Não temos a intenção de realizar um trabalho de pesquisa antropológica, mas são antropológicas várias das nossas buscas. Esse aspecto cultural nos animou desde a escritura do projeto, e antes disso. Nossa tentativa de olhar para um espaço e ver nele o que há de banal, ou seja, o território enquanto possibilidade em aberto pelo uso humano, e podermos assim fazer uma leitura crítica da normatização dos territórios, poder recriá-los (no nosso caso, principalmente recriá-los artisticamente, mas não só) e ter nossas percepções ampliadas pela infinidade de possibilidades de jogo no espaço, tudo isso inclui a cultura, a invenção da vida de quem está lá naquele espaço (seja qual for) onde nos demorarmos e para onde dirigimos nosso olhar. Ao perceber a vida das pessoas, dentro das ocupações, ou na luta por moradia, como cultura, sinto a possibilidade de participar, como artista, dessa elaboração e mesmo dessa luta. Não é pouca coisa; para mim pelo menos, uma vez que sei que para os movimentos, seus próprios métodos são prioridade, e para as pessoas e núcleos familiares sem teto, a conquista de um teto é a prioridade.

No entanto, essa cultura existe, e não podemos saber, ainda, onde um aprofundamento e aclaramento dessa cultura, e os desdobramentos dessa experiência, poderia nos levar. Estamos aqui pra isso. Estamos diante de um mar. E o começo do projeto, que já conta com uma grande gama de ações e que pretendemos relatar neste blog com mais detalhes, mais que um começo, é uma chegada em um lugar que já existia. Que venham as transformações!

Texto de Luciano Carvalho, músico e ator, membro do Coletivo Território B.

sábado, 27 de setembro de 2014

Batatinha frita, 1, 2, 3

     (Mildo Ferreira é para nós um grande parceiro. Morador participativo do movimento na Ocupação São João, é um artista, um compositor, e traz sempre uma cor humana muito viva em sua participação no processo de luta por moradia. Sua acolhida em relação à nossa presença na Ocupação foi muito importante para nós, e assim que foi possível, ele ingressou no nosso primeiro ciclo de trabalho, a Oficina de Teatro do Oprimido, que realizamos nos dois primeiros meses do projeto Não Consta no Mapa, em parceria com o Centro Cultural Ocupação São João, do qual o Mildo é um intenso colaborador. A oficina ocorreu dentro mesmo da Ocupação. É com muito prazer que reproduzimos aqui o texto que ele escreveu sobre essa experiência.)




Batatinha frita, 1, 2, 3...

Mildo Ferreira

      Inicialmente tive dificuldades de entender até aonde chegaríamos, mas aos poucos foram se encaixando as peças e comecei a entender a atividades do Teatro do Oprimido. Essa atividade, que se constitui a partir das experiências pessoais de cada indivíduo, envolveu crianças, adolescentes e adultos, os quais são diretores de teatro, atores, artistas plásticos, estudantes, operários, entre outros.

     As atividades foram desenvolvidas através dos jogos do Teatro do Oprimido e aos poucos construindo as cenas. Durante os exercícios dos jogos passados pelo prof. Armindo, foi desconstruída a questão hierárquica de que a criança e adultos não possam interagir no mesmo mundo; exemplo disso foi passado na própria construção da peça, apresentando resultados que possivelmente partiram da relação, não de subordinação, mas sim, convivência e respeito com o outro, levando à construção de vínculos.

     Durante os encontros, também pôde se contar com interação, através de 2 estrangeiros Argentinos, apesar das limitações através da linguagem, mas mesmo assim o contato foi positivo, fato notório entre as crianças.

     Vale comentar que a cada Encontro eram entregues dois cadernos, sendo esses um de poesia e o outro com olhar técnico, os quais eram entregues a alguns participantes, e no início do próximo encontro eram apresentados ao grupo.

      A construção...

     A peça teatral se deu a partir das experiências de repressão vividas pelas crianças no ambiente escolar, apresentadas através dos personagens: professores, diretores, supervisoras, faxineiras, alunos e os personagens imaginários, o relógio e a máquina, a qual levantava a questão dos sonhos profissionais de cada indivíduo que em sua maioria não se concretiza devido a atual forma de sistema, “o capitalista”.

      A apresentação...
 
     Ocorreu na rua, na Avenida São João próximo ao nº 588, e entre os presentes estavam pais, moradores da Ocupação, amigos e curiosos.
     Após a apresentação houve a participação da plateia, a qual interveio no funcionamento da máquina, com intuito de dissolver a alienação dos personagens.
     A apresentação do teatro do oprimido em alguns momentos fez o indivíduo repensar a sua relação mediante a sociedade e construir uma consciência colocando claramente quem é o opressor e o oprimido; assim concluí que a experiência foi avassaladora, direcionando caminhos possíveis para a dissolução da real situação, construindo assim uma consciência coletiva.
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Acrescentamos aqui o link de uma filmagem feita por uma das pessoas que estavam assistindo a essa apresentação:

https://www.youtube.com/watch?v=NxregX3ZnZg

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sábado, 6 de setembro de 2014

Quando entrou setembro.

    No dia primeiro de setembro, o Coletivo Território B realizou um exercício de intervenção, contando com a participação de dois moradores da Ocupação São João, nas calçadas da Avenida São João e da Rua Conselheiro Crispiniano. Os interventores estavam com suas bocas lacradas, e carregavam cinco bastões, uma corda e uma lona, com o quê montavam uma pequena barraca em algum local. Usando gizes, e juntamente com os passantes, deixavam espalhados desenhos, frases, palavras soltas, enfim, suas participações que ficariam no local após a retirada do barraco, que só acontecia quando um dos interventores caía "morto" na calçada. A ação durou cerca de uma hora. Naturalmente, todas as regras da intervenção foram quebradas ao longo da ação, tanto por pessoas de fora como por pessoas de dentro.







quarta-feira, 30 de julho de 2014

A arte e o lugar de ocupar a cidade - por Tatit Brandão


Conhecemos a Tatit Brandão no primeiro dia da Oficina de Teatro do Oprimido que o Coletivo Território B realizou com o Armindo Pinto na Ocupação São João, com o apoio do Centro Cultural Ocupação São João. Ao final da nosso segundo encontro, avisamos a todos que apresentaríamos nossa peça, Banalidade, como parte das atividades do projeto Não Consta no Mapa, na Ocupação Nova Palestina, que fica no M’Boi Mirim. Foi um enorme prazer vê-la chegar por lá, no domingo. E foi maravilhoso descobrir as afinidades de nossos trabalhos, afinidades que podemos testemunhar lendo o texto que ela publicou poucos dias depois, no blog Periferia Invisível. Decidimos colocar o texto na íntegra. As fotos também foram tiradas por Tatit Brandão.

    A arte e o lugar de ocupar a cidade

Primeiro domingo de junho, mês da Copa do Mundo no Brasil. Sol, calor, São Paulo sem metrô. No extremo sul da cidade, no bairro do Jardim Ângela, estava marcada uma apresentação de teatro de um grupo formado por atores e músicos vindos do centro da cidade.

O endereço onde estava prevista a apresentação, não constava no mapa. Não havia rua, nem número, nem teatro com palco italiano ou cadeiras confortáveis para o público. Era um terreno ocupado por moradores da região que são, em sua grande maioria, trabalhadores vitimizados pelos valores altos de aluguel, habitantes de localidades de risco, massacrados pelo sistema opressor e excludente na qual a engrenagem da metrópole gira.

O lugar sem endereço é um terreno de 500 mil metros quadrados e o valor da entrada da peça era a curiosidade e o interesse de qualquer uma das 6 mil pessoas que acampam numa das maiores ocupações de luta por habitação do país. Organizada pelo Movimento de Trabalhadores Sem Teto, cerca de duas mil famílias ocuparam, no dia 29 de novembro de 2013, o matagal enorme e abandonado que servia como depósito de lixo, carcaça de carros, entre outros. Desde então, a Ocupação Vila Nova Palestina, nome que foi dado pelos próprios moradores, tem recebido cada vez mais trabalhadores dispostos a arregaçar as mangas e entrar nessa batalha.
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Depois de uma viagem de quase 2 horas, mesmo eu tendo saído já da zona sul, dos arredores de Santo Amaro, desci do ônibus no ponto certo, graças a indicação de um passageiro. Havia pedido a informação ao motorista e ao cobrador, que não sabiam de nenhuma ocupação, “barraco tem aos montes e em todo lugar aqui nesses bairros de fim de mundo, minha filha”, disse em tom cansado o cobrador. O mesmo que disse, saindo do Terminal Capelinha, que de domingo é bom, que não tem trânsito, e que a gente ia chegar rapidinho, em torno de 1h20. Me senti num ônibus de viagem, indo para outra cidade de verdade, só que sem qualquer conforto. Assim que cheguei na Estrada do M’Boi Mirim, atravessei para o lado oposto, para ter melhor perspectiva. Era uma infinidade de barracos e entre uns aglomerados deles, uns caminhos estreitos no chão de terra, definindo as vielas. Escolhi uma dessas ruas e subi com calma. Queria ter mais olhos, atrás e nas laterais da minha cabeça. Estava ali para ver uma peça de teatro e já nesse primeiro trecho de subida, para tudo que é fresta e direção que eu olhava, havia cena.

No meio da caminhada, percebi que o relógio já marcava 14h, justamente o horário que estava prevista a apresentação. Encontrei alguns moradores pelo caminho e aproveitei a companhia, os segui, estavam indo ou voltando do almoço. A cozinha e o banheiro são coletivos e cada grupo de barracos tem os seus próprios. Cada espaço com uma quantidade de barracos próximos (o que seria quase uma reprodução de um quarteirão no asfalto) tem uma estrutura melhor e maior para garantir a manutenção de equipamentos, como geladeira, fogão, alguma estrutura de pia, alguma estrutura de armários para guardar utensílios e mantimentos, e próximo dali o banheiro. Tudo funciona.

Perguntei sobre onde seria o teatro para o primeiro casal que encontrei. O homem disse que era próximo da sede, lá em cima, que era para eu subir até o fim. Perguntei para mais uma família, esta fazia a manutenção de sua casa – duas crianças esticavam plásticos pretos parecidos com o material de sacos de lixo, um homem pregava madeiras e a mulher varria o pequeno capacho na frente da porta, completamente solta, encostada na frente do barraco. A mulher me informou, aproveitou e  explicou que todos haviam sido avisados desse evento nas assembleias que aconteceram durante a semana, além dos informes diários. Fiquei admirada e com vontade de ter aula de comunicação com os moradores que cuidam da área. De novo a sensação de que tudo funciona.

Lá no topo, o sol a pino. Quase três da tarde. Cachorro, criança, bêbado, bebê no carrinho. Todos espremidos num pedaço de sombra perto de uma das construções. Os atores aquecendo lá no centro e esperando o povo voltar do almoço enquanto o vento levantava bastante poeira.

Aproveitei para dar uma volta com a câmera fotográfica na mão. Vi homens e mulheres construindo, pregando, esticando lona, levando e trazendo ferramentas, crianças com enxada na mão. Num dos barracos parei. Era uma senhora sentada do lado de fora que quando me viu sorriu bem aberto e um senhor sem camisa, de bermuda e com um boné velho trabalhando duro. Perguntei se fazia tempo que eles estavam ali. Ela se levantou e disse que ia adorar bater um papo comigo, mas que eu não tirasse foto dela, porque não tinha se arrumado nem passado batom. Até guardei a câmera na bolsa, ali não me interessava mais nada além da fala clara e os olhos vivos daquela senhora magrinha de cabelinho tão branco. Na minha frente, estava Dona Maria do Carmo, 61 anos, mãe de filho morto, avó, guerreira e vaidosa. Contou que entrou tarde na luta, que primeiro achava que pobre nascia pobre e morria pobre. E quando era mais nova até passou um tempo acreditando que a “melhoria de vida” podia acontecer se ela trabalhasse muito, dia e noite, mas que o tempo foi passando, ela foi envelhecendo trabalhando dia e noite e a melhoria nunca que vinha. Até que perdeu o filho, 13 anos atrás, “perdi assim, morto de bala. Mataram por droga. Nunca soube direito, os vizinhos na época disseram que foi polícia, nem quis saber.” Depois disso decidiu que ia morrer pobre mesmo, porque não ia ter jeito, que não era uma questão de escolha, mas que ia deixar de herança o sonho de uma vida mais humana e justa para o neto que hoje tem 16 anos e os filhos que o neto ainda vai ter. Me contou orgulhosa que o neto trabalha numa rede de supermercado lá na cidade. “Lá na cidade”, fiquei pensando. De qual cidade ela se referia? São Paulo para ela talvez fosse longe daquela rua de terra e da casa feita de lona azul, com o piso forrado de papelão onde havia um colchão de casal. Ao mesmo tempo questionei sobre a minha própria visão dessa cidade que ela falava e eu entendia. Enquanto me perdia nos pensamentos de boca fechada, ela entrou dizendo “deixa te mostrar o meu menino, ele é a cara todinha do pai” e voltou com uma bolsa, de onde saiu uma foto 3×4. “O menino é lindo!”, eu disse emocionada antes de dar um beijo e agradecer a conversa.
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Voltei para o descampado lá em cima. Ali, as pessoas veriam um espelho de forma extraordinária, trazidos por quatro atores. Um espelho com instrumento musical, com voz afinada, com emoção, com exagero, com palavras e sequência de cenas organizadas para tudo fazer sentido, para que a mensagem pudesse ser decodificada por qualquer um, incluindo e principalmente os protagonistas reais da história: aquele público. Tudo isso porque “Banalidade”, o primeiro e até então único espetáculo do Coletivo Território B, conta a história da Ocupação Pinheirinho, organizada também pelo MTST numa cidade do interior paulista não tão longe, São José dos Campos. Nem tão longe de distância, muito menos daquela realidade.

A montagem deste espetáculo surgiu de uma pesquisa e construção de cenas que o grupo fazia em praças e espaços públicos. O espetáculo foi feito na rua e não para a rua. Inicialmente foi montada sem diretor, depois ganhou a colaboração do olhar de dois artistas da Brava Cia, que somaram na amarração de um ponto de vista de direção. Nesse processo, o tema da peça acabou incluindo a questão da moradia e assim a história do Pinheirinho é contada com o contraponto da alegoria da Mamãe Grande, personagem de um conto do Gabriel Garcia Marquez. Com isso, o grupo formatou um projeto nomeado “Não Consta no Mapa”, com o qual foi contemplado este ano pela Lei de Fomento ao Teatro da cidade de São Paulo. O projeto inteiro é voltado para a identidade cultural produzida dentro de ocupações de luta por moradia. O grupo já havia passado por outras ocupações, como no bairro do Grajaú, num prédio que está sendo construído no litoral organizado pela Associação de Cortiços do Centro da cidade de Santos e num acampamento de frente para a Secretaria da Habitação, de pessoas que haviam sido despejadas de uma ocupação na Av. Ipiranga por reintegração de posse.

Segundo Luciano Carvalho, ator e músico da peça, em todas essas experiências o que se observa é que vem se falando cada vez mais da necessidade de atividades culturais dentro de ocupações, por diversos motivos, “tem o pensamento de que cultura não vem de fora, cultura você mesmo produz, sendo assim, essa luta por moradia já tem uma cultura própria e a nossa função como artista é percebê-la e transformá-la numa identidade consciente”. E completa dizendo que a maior motivação do grupo com o espetáculo é tornar visível essas pessoas que a mídia trata como invisíveis e fazer a população olhar para isso, independente se são a favor ou contra, mas  perceberem que ali tem vida. Além das apresentações, o Território B está também preenchendo as noites de segundas-feiras na Ocupação São João, onde acontece desde maio uma oficina de Teatro do Oprimido, com o facilitador Armindo Pinto.

Durante a apresentação da peça mantive meus ouvidos bem abertos e acredito que tenha assistido mais ao público do que à peça em si. Numa cena em que o sistema capitalista é representado por uma grande boca aberta que pede insaciavelmente por sonhos alheios (simbolizados em cena por bexigas de ar distribuídos para o público), uma mulher atrás de mim, segurando o balão disse: “Eu hein que vou dar assim pra qualquer um meu sonho”, um moço provocou: “E você nunca vai dar seu sonho pra ninguém?”, e ela arrematou: “Primeiro eu preciso saber quem é e o que querem fazer dele. Meu sonho é o que eu tenho de mais valioso na vida!”. Ali, pra mim, eu já podia ir embora.
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Quando a peça acabou, a cozinha serviu gratuitamente para as crianças pipoca e refrigerante, que vieram de doação dos acampados. Havia cerveja sendo vendida, como forma de arrecadar verba. “O povo é cheio de preconceito, fica por aí falando besteira, que a gente não trabalha, que a gente não consegue nada, que não sabe de onde vem o dinheiro pra comprar as coisas. Por que não sobe o morro e vem perguntar aqui pra gente, ver as prestações de contas, as anotações? Por que não vem ver com os próprios olhos? Porque não é todo mundo que tem vontade de sujar o pé na lama, né?”, tive que concordar com a verdade mais que verdadeira da Miriam, que falava comigo e servia a criançada que não parava de pedir refrigerante de laranja ou de guaraná.

O sol caía no horizonte bonito quando fui conversar com a Jussara Basso, uma das coordenadoras estaduais do MTST, quem recebeu e agendou o grupo. Não podia falar muito porque dentro de pouco tempo aconteceria ali, no mesmo local, uma assembleia. Aproveitando a deixa, me contou que a pauta principal daquela noite era a organização do dia seguinte no apoio aos metroviários, que estavam indo para o quinto dia de greve na luta por melhores condições de trabalho. Assembleias acontecem ali pelo menos três vezes na semana e nelas surgem as mais variadas pautas, desde consciência ambiental, convívio social, necessidades estruturais, até a agenda da semana. Segundo Jussara, a arte tem lugar certo dentro da ocupação. Todo fim de semana acontecem projeções de filmes, espetáculos de dança, teatro, circo. E isso foi votado em assembleia e em torno de 3 mil moradores votaram que sim, que queriam eventos culturais aos finais de semana. Na própria comunidade já se formou um grupo de teatro feito por 13 acampados. O que me leva a refletir que este ambiente de comunidade, de preocupação e cuidado coletivos, impulsiona e fomenta a vontade e a disponibilidade de corpo para a expressão artística. Seja ela qual for.

Saí de lá e trouxe comigo a certeza de que a periferia é invisível só para quem não quer enxergá-la. Só para os preguiçosos no olhar, para os limitados que se cercam em seus próprios umbigos.

Naquele quase fim de zona sul, num bairro que é contemplado pela margem nada bonita ou limpa da represa Guarapiranga, é bem clara a imagem viva da construção com fé e com muito suor de uma sociedade colaborativa tão sonhada por tantos. É de um dos parceiros do Raul Seixas uma frase que é das minhas preferidas da vida: o homem só precisa de duas coisas para viver: comida e sonho. Para os artistas, para os oprimidos e para todos os trabalhadores que estão na luta em busca de uma vida com menos desigualdade, sonhar não é opção, é responsabilidade social.

http://www.periferiainvisivel.com.br/a-arte-e-o-lugar-de-ocupar-a-cidade/

Tatit Brandão é fotógrafa, jornalista e atriz pesquisadora de pedagogia do teatro na Escola Livre de Teatro de Santo André. Trabalha como assessora de imprensa freelancer, dá aula de fotografia e comunicação comunitária em comunidades e colabora escrevendo e fotografando para sites de arte e cultura. Tatit é marxista. Filha de Iansã. E mãe da Nara.


Periferia Invisível é um portal de uma Associação de Arte e Cultura (de mesmo nome) que fica na Zona Leste, no qual Tatit colabora como colunista - ou midialivrista, como ela prefere dizer. O Periferia Invisível já existe desde 2009 e desde então se presta à função de registrar o que está acontecendo de cultura nas diversas periferias da cidade. Esse ano a associação teve a conquista de ser contemplada pelo edital de Ponto de Cultura.