segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Caminhos fora do mapa - derivas e terrenos baldios


por Milene Valentir




Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
E que você não pode vender no mercado
Como, por exemplo, o coração verde dos pássaros,
Serve para poesia.
Manoel de Barros – (Trazido por Rafa)




Escrevo uma tentativa de “deriva” literária ao narrar o que foram as colaborações do Coletivo Mapa Xilográfico junto ao Coletivo Território B em sua criação para o projeto Não consta no Mapa. Vou trazer minhas observações junto às frases, desenhos e avaliações dos integrantes dos coletivos durante nossas experiências. Farei um texto multiautoral, porém com minha agulha, linha e corte.
O pessoal do Território B propôs a nós do Mapa Xilo (Milene, Tábata e Diga) uma ação provocativa para seu trabalho teatral, carregada de rua, intervenções urbanas e experimentos no espaço público. Uma parte disso foram as derivas – ações de desautomação do caminhar cotidiano e da relação com a cidade - para posteriormente inspirar ações poéticas no espaço público. As derivas são inspiração nos Situacionistas que criticavam o urbanismo francês das décadas de 50 a 70 e propunham caminhadas aleatórias para uma relação não utilitária com a rua. As alterações feitas por nós nas proposições de derivas são livres apropriações para nossa realidade urbana. Com elas tivemos a intenção de criar espaços de permanência – afetividade, dissolver contratos implícitos do espaço urbano, desacostumar o olhar e a relação com o concreto, criar a possibilidade de um nomadismo urbano e por último apostar em ocupações sem posse, a partir de ocupações temporárias de terrenos baldios na cidade para habitar artisticamente.

Ocupação sem posse:
sedentarismo = propriedade
Não existe terra sem dono em São Paulo. Terra = poder.




A proposta dos terrenos baldios foi inspirada em duas experiências, o Guia de terrenos baldios de São Paulo, projeto de Lara Almarcegui para a Bienal de São Paulo, 2006 e o projeto Lotes Vagos – ocupações experimentais de Breno Silva e Louise Ganz em Belo Horizonte, 2009.
Experiência 1 – Terreno do Cambuci + deriva do vidro quebrado
Mapa de deriva - Magê


Seguimos em busca da ocupação temporária de terrenos baldios na cidade a fim de vivenciar ações poéticas e exercícios de derivas no entorno. Relações não utilitárias, coletivas e celebrativas formam nosso mote.
Ocupar demanda outro corpo
Outra roupa
Outro corpo
Estágio anterior
Ao conforto
Espaço a se confrontar

Gabriel


Neste dia foi ocupado um terreno no bairro do Cambuci, no local iria subir um novo prédio.
Histórias que foram varridas para terraplanar o terreno. Juliana


No dia em que os coletivos ocuparam o terreno, haviam funcionários de uma empresa responsáveis por montar os tapumes que cercariam o local. Os coletivos e os funcionários ocuparam o terreno de forma diversa - nós abrimos uma lona e sentamos em roda para observar, ler, conversar e preparar nossa deriva no entorno. Os funcionários não se opuseram à ação dos grupos no local. Ambos conviveram tranquilamente naquele dia, até o fechamento dos tapumes, é claro.


Um espaço que se abre fora do ritmo da cidade. Juliana


Aquela ocupação duraria somente aquele dia necessariamente, ao fim da tarde o terreno estaria lacrado para o início da obra do mais novo residencial. Nas laterais ainda dava para ver o recorte das paredes da antiga casa que foi demolida. Era uma casa grande com quintal ao fundo. Uma árvore ainda estava de pé. Será que as brincadeiras e o ócio no quintal serão refeitos nas varandas gourmets?


Ocupar o terreno deu sensação de empoderamento. Permitir-se. Usufruir daquele espaço de forma autônoma, sem posse. De maneira não utilitária. Tábata


Depois disso, propusemos ao Território B um jogo: um exercício de “deriva” pelo entorno do terreno. Foi sobreposto um vidro a um mapa das ruas da região para ser quebrado sobre ele. As rachaduras e cacos criaram caminhos, seguimos um deles. O grupo todo caminhou por esse percurso e tirou como meta o limite criado pelo fim da folha impressa e achar o que não estava no mapa. O caminhar desinteressado liberava os múltiplos sentidos para a percepção.
Outro terreno
Os responsáveis pelo terreno, naquela hora, eram trabalhadores que estavam construindo a cerca/muro. Eles nos deixaram ficar em paz.
Abaixo de um chão de uma casa, acima do chão da terra: uma faixa de escombros, pedras, pedaços de metal; um terreno desterrado, banguela, sem água.
Em volta, casas e chãos artificiais em profusão, terrenos privativos hermeticamente assegurados contra invasores.
A rua é pública, mas civilizada. Confia-se na ordem estabelecida. Mas de vez em quando passa o carro da PM.
Um lado da avenida principal. Outro lado. Lados diferentes. Um prédio velho, realmente velho, com gente de “ menor renda”.
A feira é longa, o pastel barato.
A perna cansa, quase chove.
Os pastéis são gostosos.
O vidro quebrado agora faz parte.

Luciano


Para a surpresa de todos havia uma feira livre na rua que “não constava no mapa”. Um espaço convidativo, frutas, legumes, cores, cheiros, pessoas conversando, cantando. Uma abertura no mapa, tão comum (ainda) e tão instigante.
Achamos uma parte que “não consta no mapa” e nesta parte tinha uma feira livre bem extensa. Foi um movimento bem “mágico”. Mudou o estado interno: mudou a frequência em relação a frequência da cidade. Estado diferente de presença. Juliana


Ao final o grupo retornou para o terreno, por outra rota e terminou seu encontro em um piquenique na mesma lona estendida no chão. Percepções, sensações e pastel de feira.














Experiência 2 - terreno do Glicério + deriva com mapas do Rios de Janeiro e Recife


Mapa de deriva – Magê


O  terreno ocupado neste dia foi no bairro do Glicério, um bairro repleto de imigrantes, casas de pensão, e alguns prédios em construção para um “novo padrão de habitação”. Era um dia com o sol escaldante e o terreno não tinha sombras.


As pessoas que habitavam próximo ao terreno nos observavam naquela lona preta discutindo e escrevendo sob o sol. (...) É impressionante que esse terreno valha milhões; não tem sentido quando se está ali fazendo coisas singelas.” Tábata


Invariavelmente os terrenos baldios na cidade de São Paulo já estão mapeados, cercados, valorizados ou em espera para sua valorização e quase sempre tem pessoas cuidando de sua “integridade”.
Neste caso o terreno era vizinho de uma oficina mecânica, seu “cuidador”, o dono da mecânica era apelidado pelos vizinhos como “Do Oeste”. O local tinha muita sujeira, carros abandonados, muitos objetos e um “pé de bucha” plantado na cerca lateral. A mesma lona foi colocada ao chão e iniciamos um registro reflexivo do encontro anterior, seguido de uma leitura. Impossibilitados de permanecer no terreno por conta do sol escaldante e da presença dos ratos (enormes) no local, partimos para a segunda etapa do encontro, que teve sua continuidade em uma sombra na calçada.


Piquenique no terreno baldio
Esqueleto de carros
Abandonados. Alguma carniça
Em nossas narinas.
O sol escalda e expulsa
E os mapas de outras paragens
Converte paisagens.
Entulhos são mares.
Terrenos especulados escondem matas, árvores, mirantes
E o segredo dos golpistas.
Acaba o trajeto
Na praça repleta de crianças,
cercada por paredes
densamente habitadas
piquenique parado no tempo.
Espaço criado.

Danilo


Dividimo-nos em 2 grupos e a cada um foi dado um mapa, de Recife e do Rio de Janeiro. Foi sugerido a cada grupo que caminhasse no bairro tomando como referência o mapa em questão. Uma pedrinha jogada no mapa sorteava o ponto de partida. A caminhada propunha uma sobreposição de paisagens, percepções e direcionamentos. Cada grupo vivenciou uma geografia diferente – em andanças até o cemitério se depararam com uma escola pública, ou a busca pelo mar de Recife levou o grupo até um muro que escondia uma demolição. Percepções diversas e olhares estrangeiros em nossas rotas cotidianas.


Vontade de fazer muito mais vezes pra ir entrando na brincadeira-jogo individualmente ou em grupo. Tábata


O ponto de encontro dos dois grupos era uma praça no Glicério cercada por prédios que têm suas paredes laterais emendadas, criando um grande paredão – muro habitado por centenas de famílias. Fizemos nossa comilança na praça para compartilhar e elaborar os trajetos realizados.
A partir das experiências das duas derivas os coletivos seguiram nos meses seguintes para o processo de criação de intervenções urbanas. O Coro Coletivo, Mulheres Secas, Quadrado Autônomo e Experiências de 15 minutos foram algumas das intervenções criadas por integrantes do Território B e executadas pelos dois coletivos.
Espaço - Lógica própria. Onde se fabrica suas próprias leis e sentidos. Rafa


As experimentações foram intrigantes e deram a vontade de continuidade, de estender-se mais por cada uma delas. Elas merecem um capítulo a parte.
A proposta feita ao Coletivo Mapa Xilo de provocar, de fazer dos encontros um momento fértil para a intervenção urbana acontecer foi um grande desafio para uma criação artística que não tem receita, nem definições precisas, nem mesmo uma estética. É antes um campo aberto, um rito, que extrapola conceituações conclusivas e classificatórias. É preciso viver “em estado de”. É preciso disponibilidade, escuta e espírito de desafio; exercício constante em uma cidade espetacularizada como São Paulo.
Que as sementes germinem...

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