por Milene
Valentir
Tudo
aquilo que nos leva a coisa nenhuma
E
que você não pode vender no mercado
Como,
por exemplo, o coração verde dos pássaros,
Serve
para poesia.
Manoel
de Barros – (Trazido por Rafa)
Escrevo
uma tentativa de “deriva” literária ao narrar o que foram as
colaborações do
Coletivo Mapa
Xilográfico junto ao Coletivo Território B em sua criação para o
projeto Não consta no Mapa. Vou trazer minhas observações junto às
frases, desenhos e avaliações dos integrantes dos coletivos durante
nossas experiências. Farei um texto multiautoral, porém com minha
agulha, linha e corte.
O
pessoal do Território B propôs a nós do Mapa Xilo (Milene, Tábata
e Diga) uma ação provocativa para seu trabalho teatral, carregada
de rua, intervenções urbanas e experimentos no espaço público.
Uma parte disso foram as derivas – ações de desautomação do
caminhar cotidiano e da relação com a cidade - para posteriormente
inspirar ações poéticas no espaço público. As derivas são
inspiração nos Situacionistas que criticavam o urbanismo francês
das décadas de 50 a 70 e propunham caminhadas aleatórias para uma
relação não utilitária com a rua. As alterações feitas por nós
nas proposições de derivas são livres apropriações para nossa
realidade urbana. Com elas tivemos a intenção de criar espaços de
permanência – afetividade, dissolver contratos implícitos do
espaço urbano, desacostumar o olhar e a relação com o concreto,
criar a possibilidade de um nomadismo urbano e por último apostar em
ocupações sem posse, a partir de ocupações temporárias de
terrenos baldios na cidade para habitar artisticamente.
Ocupação
sem posse:
sedentarismo
= propriedade
Não
existe terra sem dono em São Paulo. Terra = poder.
A
proposta dos terrenos baldios foi inspirada em duas experiências, o
Guia de terrenos baldios de São Paulo, projeto de Lara Almarcegui
para a Bienal de São Paulo, 2006 e o projeto Lotes Vagos –
ocupações experimentais de Breno Silva e Louise Ganz em Belo
Horizonte, 2009.
Experiência
1 – Terreno do Cambuci + deriva do vidro quebrado
Mapa
de deriva - Magê
Seguimos
em busca da ocupação temporária de terrenos baldios na cidade a
fim de vivenciar ações poéticas e exercícios de derivas no
entorno. Relações não utilitárias, coletivas e celebrativas
formam nosso mote.
Ocupar
demanda outro corpo
Outra
roupa
Outro
corpo
Estágio
anterior
Ao
conforto
Espaço
a se confrontar
Gabriel
Histórias
que foram varridas para terraplanar o terreno. Juliana
No
dia em que os coletivos ocuparam o terreno, haviam funcionários de
uma empresa responsáveis por montar os tapumes que cercariam o
local. Os coletivos e os funcionários ocuparam o terreno de forma
diversa - nós abrimos uma lona e sentamos em roda para observar,
ler, conversar e preparar nossa deriva no entorno. Os funcionários
não se opuseram à ação dos grupos no local. Ambos conviveram
tranquilamente naquele dia, até o fechamento dos tapumes, é claro.
Um
espaço que se abre fora do ritmo da cidade. Juliana
Aquela
ocupação duraria somente aquele dia necessariamente, ao fim da
tarde o terreno estaria lacrado para o início da obra do mais novo
residencial. Nas laterais ainda dava para ver o recorte das paredes
da antiga casa que foi demolida. Era uma casa grande com quintal ao
fundo. Uma árvore ainda estava de pé. Será que as brincadeiras e o
ócio no quintal serão refeitos nas varandas gourmets?
Ocupar
o terreno deu sensação de empoderamento. Permitir-se. Usufruir
daquele espaço de forma autônoma, sem posse. De maneira não
utilitária. Tábata
Depois
disso, propusemos ao Território B um jogo: um exercício de “deriva”
pelo entorno do terreno. Foi sobreposto um vidro a um mapa das ruas
da região para ser quebrado sobre ele. As rachaduras e cacos criaram
caminhos, seguimos um deles. O grupo todo caminhou por esse percurso
e tirou como meta o limite criado pelo fim da folha impressa e achar
o que não estava no mapa. O caminhar desinteressado liberava os
múltiplos sentidos para a percepção.
Outro
terreno
Os
responsáveis pelo terreno, naquela hora, eram trabalhadores que
estavam construindo a cerca/muro. Eles nos deixaram ficar em paz.
Abaixo
de um chão de uma casa, acima do chão da terra: uma faixa de
escombros, pedras, pedaços de metal; um terreno desterrado,
banguela, sem água.
Em
volta, casas e chãos artificiais em profusão, terrenos privativos
hermeticamente assegurados contra invasores.
A
rua é pública, mas civilizada. Confia-se na ordem estabelecida. Mas
de vez em quando passa o carro da PM.
Um
lado da avenida principal. Outro lado. Lados diferentes. Um prédio
velho, realmente velho, com gente de “ menor renda”.
A
feira é longa, o pastel barato.
A
perna cansa, quase chove.
Os
pastéis são gostosos.
O
vidro quebrado agora faz parte.
Luciano
Para
a surpresa de todos havia uma feira livre na rua que “não constava
no mapa”. Um espaço convidativo, frutas, legumes, cores, cheiros,
pessoas conversando, cantando. Uma abertura no mapa, tão comum
(ainda) e tão instigante.
Achamos
uma parte que “não consta no mapa” e nesta parte tinha uma feira
livre bem extensa. Foi um movimento bem “mágico”. Mudou o estado
interno: mudou a frequência em relação a frequência da cidade.
Estado diferente de presença. Juliana
Ao
final o grupo retornou para o terreno, por outra rota e terminou seu
encontro em um piquenique na mesma lona estendida no chão.
Percepções, sensações e pastel de feira.
Experiência
2 - terreno do Glicério + deriva com mapas do Rios de Janeiro e
Recife
Mapa
de deriva – Magê
O
terreno ocupado neste dia foi no bairro do Glicério, um bairro
repleto de imigrantes, casas de pensão, e alguns prédios em
construção para um “novo padrão de habitação”. Era um
dia com o sol escaldante e o terreno não tinha sombras.
“As
pessoas que habitavam próximo ao terreno nos observavam naquela lona
preta discutindo e escrevendo sob o sol. (...) É impressionante que
esse terreno valha milhões; não tem sentido quando se está ali
fazendo coisas singelas.” Tábata
Invariavelmente
os terrenos baldios na cidade de São Paulo já estão mapeados,
cercados, valorizados ou em espera para sua valorização e quase
sempre tem pessoas cuidando de sua “integridade”.
Neste
caso o terreno era vizinho de uma oficina mecânica, seu “cuidador”,
o dono da mecânica era apelidado pelos vizinhos como “Do Oeste”.
O local tinha muita sujeira, carros abandonados, muitos objetos e um
“pé de bucha” plantado na cerca lateral. A
mesma lona foi colocada ao chão e iniciamos um registro reflexivo do
encontro anterior, seguido de uma leitura. Impossibilitados de
permanecer no terreno por conta do sol escaldante e da presença dos
ratos (enormes) no local, partimos para a segunda etapa do encontro,
que teve sua continuidade em uma sombra na calçada.
Piquenique
no terreno baldio
Esqueleto
de carros
Abandonados.
Alguma carniça
Em
nossas narinas.
O
sol escalda e expulsa
E
os mapas de outras paragens
Converte
paisagens.
Entulhos
são mares.
Terrenos
especulados escondem matas, árvores, mirantes
E
o segredo dos golpistas.
Acaba
o trajeto
Na
praça repleta de crianças,
cercada
por paredes
densamente
habitadas
piquenique
parado no tempo.
Espaço
criado.
Danilo
Dividimo-nos
em 2 grupos e a cada um foi dado um mapa, de Recife e do Rio de
Janeiro. Foi sugerido a cada grupo que caminhasse no bairro tomando
como referência o mapa em questão. Uma pedrinha jogada no mapa
sorteava o ponto de partida. A caminhada propunha uma sobreposição
de paisagens, percepções e direcionamentos. Cada grupo vivenciou
uma geografia diferente – em andanças até o cemitério se
depararam com uma escola pública, ou a busca pelo mar de Recife
levou o grupo até um muro que escondia uma demolição. Percepções
diversas e olhares estrangeiros em nossas rotas cotidianas.
Vontade
de fazer muito mais vezes pra ir entrando na brincadeira-jogo
individualmente ou em grupo. Tábata
O
ponto de encontro dos dois grupos
era uma praça no Glicério cercada por prédios que têm suas
paredes laterais emendadas, criando um grande paredão – muro
habitado por centenas de famílias. Fizemos nossa comilança na praça
para compartilhar e elaborar os trajetos realizados.
A
partir das experiências das duas derivas os coletivos seguiram nos
meses seguintes para o processo de criação de intervenções
urbanas. O Coro Coletivo, Mulheres Secas, Quadrado Autônomo e
Experiências de 15 minutos foram algumas das intervenções criadas
por integrantes do Território B e executadas pelos dois coletivos.
Espaço
- Lógica própria. Onde se fabrica suas próprias leis e sentidos.
Rafa
As
experimentações foram intrigantes e deram a vontade de
continuidade, de estender-se mais por cada uma delas. Elas merecem um
capítulo a parte.
A
proposta feita ao Coletivo Mapa Xilo de provocar, de fazer dos
encontros um momento fértil para a intervenção urbana acontecer
foi um grande desafio para uma criação artística que não tem
receita, nem definições precisas, nem mesmo uma estética. É antes
um campo aberto, um rito, que extrapola conceituações conclusivas e
classificatórias. É preciso viver “em estado de”. É preciso
disponibilidade, escuta e espírito de desafio; exercício constante
em uma cidade espetacularizada como São Paulo.
Que
as sementes germinem...
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