terça-feira, 11 de agosto de 2015

Coletivo Território B - Musicalidade e Troca.

Coletivo Território B - Musicalidade e Troca.
Caio Marinho

Pude acompanhar desde o ano de 2011, ora um pouco mais próximo, ora mais distante, o trabalho do Coletivo Território B. Tomando como referência o primeiro espetáculo deste coletivo, “Banalidade”, e algumas outras intervenções cênicas, percebe-se um caminho muito claro de discurso do grupo, construído nesta caminhada de investigação do espaço urbano. A questão da habitação desenvolvida no espetáculo, e parte presente na pesquisa com as ocupações de moradia é um ponto de partida para uma série de questões acerca das relações de poder, ou, de quem tem o “Controle da Situação”, como aparece em uma das suas intervenções.
Tendo então a clareza do discurso, é necessário que o trabalho tome forma, adquira corpo cênico para estar na rua. A rua está cheia de discursos pululando em cada esquina, e o grande desafio para nós, fazedores de teatro de rua, é encontrar formas para que o nosso dizer reverbere em meio a esse grande amontoado de vozes, para que de alguma forma, a ocupação da cidade e todas as questões que isso implica deixe de passar despercebida para ganhar a atenção. O teatro de rua se coloca no espaço urbano para dizer alguma coisa, e por vezes, a própria rua é colocada em foco. A rua deixa de ser paisagem e vira objeto. Objeto de intervenção poética, para que seja discutida, decupada, desconstruída em cena, e desta forma, ao menos em alguma fagulha de pensamento de um transeunte qualquer, seja vista.
De todos os recursos poéticos utilizados para ganhar este espaço, o trabalho do grupo destaca-se pela musicalidade. No teatro, onde a música é texto, o texto musical do Coletivo Território B se realça em meio a cidade. Como Luciano Carvalho costuma dizer, em uma competição por espaço sonoro na rua, a música perde em volume e intensidade do som, mas ainda assim é ouvida, pois ganha no contraste. A melodia se sobrepõe aos outros sons simplesmente por ser uma sonoridade organizada, diferente da sinfonia caótica presente na cidade. E desta mesma forma o teatro. A poesia, ocasionalmente dura e por vezes sarcástica do grupo, ganha destaque sobre o asfalto pelo contraste, e por este contraste o discurso pode ser ouvido.
Tendo em vista esse alinhamento estético da música com o discurso ideológico do coletivo, no ano de 2014, contemplados com a lei de fomento para a cidade de São
Paulo, o grupo realizou como uma das ações do projeto, o Ateliê Musical, aberto a todos aqueles interessados em pesquisar a música em cena e a criação musical por atores. Pude fazer parte desta ação, me aproximando novamente deste grupo que acompanho o trabalho com tanto carinho. Nos encontros do ateliê, a pesquisa do grupo pôde ser dividida e aprofundada com os participantes. Acompanhando o processo de criação, percebi na prática o quanto a música é pensada juntamente com a dramaturgia de suas ações cênicas, o processo de criação coletiva do grupo não parece apartar música e cena.
Unindo diversos coletivos de várias partes da cidade, e pesquisas teatrais e musicais distintas, o Ateliê funcionou como um espaço de troca, possibilitando, por meio de um treinamento técnico e experimentações individuais e coletivas, a aproximação de artistas – muitas vezes sem nenhuma relação com o universo musical – com a criação de música para a cena.
A condução do Ateliê partiu sempre de um conteúdo mais técnico de ritmo e percepção musical, trabalhados para desenvolver uma noção básica necessária à criação, bem como de aquecimentos vocais focados no desenvolvimento de habilidades cognitivas que permitem aos artistas realizar diversas ações paralelas à execução musical. Necessidade esta, vivenciada por qualquer ator que precise executar uma música, seja cantando ou tocando um instrumento, enquanto realiza uma cena teatral. Na rua, essa habilidade torna-se ainda mais necessária, pois além de realizar as duas atividades, é necessário manter a atenção no entorno, percebendo tudo o que a rua traz de intervenção ao espetáculo para poder lidar com isso artisticamente, não perdendo o foco da obra que se está executando e colocando em jogo com o público.
Outro ponto importante desenvolvido no ateliê foi a bagagem de cada um dos participantes. As experiências musicais de cada um sempre foram levadas em consideração para a criação, entendendo a música como parte inerente de todo artista e todo ser humano. Pensando desta forma, qualquer um poderia fazer música, e a partir disso, foram trabalhados os conceitos e habilidades técnicas – Não para uma execução virtuosa, mas para instrumentalizar os participantes a criar musicalmente - equalizando de certa forma, o repertório criativo musical de cada um, para que, a partir das bagagens individuais, pudéssemos construir obras musicais conjuntas.
Estando todos os participantes carregados das mesmas ferramentas e com os ouvidos focados na percepção do conjunto, partíamos para as experimentações de criação. Individualmente, ou em pequenos grupos, trabalhamos com músicas já existentes, do repertório popular, desconstruindo a melodia, o ritmo, a métrica, ressignificando as letras, enfim, retrabalhando os conceitos musicais desenvolvidos, em músicas já conhecidas. Como resultado desse processo de criação coletiva, realizamos diversas ações performáticas, a mais significativa de todas, foi o Coral Analino, que por meio da desconstrução de músicas natalinas tradicionais, saiu nas ruas no final do ano para deflagrar por meio de novas letras e arranjos musicais, os valores morais e capitalistas desta data.
Por fim, uma das principais ações do ateliê realizadas durante o ano foram as trocas entre os coletivos. Durante os dias de ateliê, cada coletivo apresentava suas pesquisas musicais e composições para todos os participantes, e em um segundo momento, os grupos apresentavam, cada um em um dia, trechos de espetáculos, ou cenas com músicas para serem discutidas em conjunto, por todos os participantes, que neste momento já possuíam um repertório de criação comum e conheciam um pouco da trajetória musical do trabalho apresentado.
Sendo participante deste ateliê, pude perceber que o principal fruto deste trabalho foi a apropriação da criação musical pelo Coletivo Território B e por todos os grupos participantes. Hoje, em diferentes níveis é claro, até pela característica aberta dos encontros, os coletivos tem muito mais propriedade e confiança em relação a musicalidade de suas criações teatrais. Cada artista tem mais certeza e clareza ao cantar uma música ou tocar um instrumento em cena. Hoje vivencio na prática o que vejo cada vez mais desenvolvido também no Coletivo Território B. A música, executada com domínio em cena, possibilita o discurso ser ouvido, e principalmente, ser vivenciado pelo público que entra em jogo com os artistas, por meio do teatro, e agora também da música, que a cada dia tenho mais certeza: não estão separados.

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